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Cara de sapo

Atualizado: 2 de set. de 2019

A unha do pé encravada. O suor excessivo. A cara de sapo que ele faz enquanto goza. Nessa ordem. Eram essas as três coisas em que Bia pensava cada vez que uma saudade ameaçava se instalar. O tripé da rehab, como ela chamou o método criado para esquecê-lo. A unha do pé bastava na maior parte dos dias. O suor pingando não era um problema em si, mas a lembrança do colchão no sol e a escassez de lençóis limpos depois que ele partia, funcionava bem. Guardava a cara de sapo para situações extremas. Era um risco. Lembrar da cara de sapo significava trazer de volta ele inteiro, nu, sobre ela, dentro dela, o peso do corpo, o respirar ofegante. E só então a cara de sapo. Cabeça jogada para trás, pescoço afundado entre os ombros, a boca escancarada ameaçando um grito, a língua exposta, o espasmo das pálpebras, a pele lustrosa, o gemido. Um sapo. A salvação estava em gozar primeiro.


Não era bonito. Ela o teria evitado se fosse. Também não era feio. Além disso, usava um All star surrado demais e roupas neutras, sem qualquer personalidade. Vestia uma jaqueta jeans mais curta que o bom senso recomendava e arrumava o cabelo como Elvis. Um Elvis loiro. Pitoresco é outra palavra pra cafona, foi o que ele respondeu quando ela apelidou seu estilo no primeiro encontro. Depois disse que os opostos se atraem e riu com a boca torta. Naquela mesma noite, as roupas formaram uma pilha só.


Cuecas velhas, meias velhas, Bia pensava em acrescentar isso à lista. Mais a total ignorância dele ante a filmografia dos Coen. Íons opostos se atraem, Lucas, não pessoas, era a resposta dela. Não tinham o menor futuro. Sempre soube. Sempre deixou claro para ele: sexo. O lance é só sexo. Veremos, meu bem, veremos, era o que ele dizia e encostava a mão de leve na dela enquanto andavam pela rua, lado a lado.


– Lucas, não força, por favor.


E a mão dele voltava para o bolso enquanto as calças fossem mantidas. Não muito. Bastava um toque e amanhã o colchão estaria no sol. Bia se odiava por isso. Dizia para si mesma que dessa vez seria a última. Para ele, não.


Jamais daria as chaves da sua casa para um cara, ainda que ele viesse cinco vezes na semana, direto do trabalho, ainda que chegasse de madrugada interrompendo o sono, mochila nas costas, sorriso enorme e cheiro de fritura. Punha fora todas as escovas de dentes que brotavam ao lado da sua.


Numa noite, cansada demais, deixou a porta aberta para que ele entrasse enquanto ela dormia. Sentiu o calor crescendo na cama, o beijo no rosto, o abraço. Manteve os olhos fechados, sorriu, seguiu dormindo.


Unha encravada, suor, cara de sapo. Unha encravada, suor, cara de sapo. Entoava o mantra antes de dormir e logo depois de acordar, três vezes por trinta dias. Às vezes, mais uma ao entardecer.


________

Nota da autora: Esse conto é um dos meus três inclusos na coletânea Qualquer ontem (Bestiário, 2019), lançada em Porto Alegre, dia 17 agosto, junto aos quinze colegas com quem cursei a Oficina de Criação Literária do querido Assis Brasil, ano passado, na PUCRS. A organização e a contracapa são assinadas por ele. Deixo aqui o link da loja da editora para quem tiver interesse e, abaixo, a capa e um pedacinho da orelha (o Van Gogh que habita em mim). Espero que gostem. Um beijo,


Ju Blasina


Coletânea Qualquer ontem (Bestiário, 2019)

"Os contos desta coletânea remexem em malas e gavetas. Encontram recordações cotidianas, aos pedaços, como o primeiro beijo, os desejos proibidos, os afetos e rancores, os aromas da casa, o gosto do mel e do pêssego maduro, a queda de bicicleta e dos dentes.


São histórias silenciosas, das recordações triviais, que parecem ter ficado para trás em alguma mudança. Até alguém abrir uma caixa empoeirada e descobrir o que sempre esteve ali dentro, em um lugar escuro, para fingir esquecer. E quem esquece, lembra."



Sobre Ju Blasina:

Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.

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